terça-feira, 3 de julho de 2007

Crônica

Bem, essa é uma crônica de minha autoria. Crônica que eu fiz como atividade da faculdade e achei interessante colocar aqui no blog (já que ela foi muito elogiada). Não é nada muito complexo não, é bem singela, um pouco clichê...veja só.


Lembrei!

Começo o dia olhando a minha cara amarrotada no espelho. O sono, a preguiça, se confunde com a minha pouca beleza. Nunca vi coisa tão feia! Mas nada que um bom banho quente não resolva. Ficar ali parado embaixo do chuveiro por uns dez minutos, maravilha! Porém me vem a triste lembrança de que o chuveiro queimou na semana passada e eu sequer tomei uma providência. O jeito é tomar esse maldito banho frio!
Depois desse banho doloroso e congelante, o que resta é tomar aquele café quentinho, pães frescos e companhia. Mas, surge outra triste lembrança, ainda tenho que fazer esse bendito café! Que saudades daqueles tempos em que eu morava com minha mãe! Tempos em que após um banho quente a mesa do café estava lá, pronta, com tudo que era necessário para começar bem o dia.
De banho e café mal tomados saio de casa, chamo o elevador, e outra lembrança vem à cabeça, o elevador está em manutenção, o síndico pediu um dia para consertar-lo. O que resta é enfrentar as escadas. O duro não é descer nove andares até a garagem, e sim subi-los na hora da volta.
Chego à garagem do prédio e novamente outra lembrança, o carro foi para o conserto. Problema no radiador de novo! Seu Manel falou que em dois dias resolvia o problema. O que resta é pegar um ônibus. Nunca! Eu odeio andar de ônibus. Aquele calor, aquela confusão, pessoas estranhas que sentam ao seu lado. Sem falar na grande possibilidade de assaltarem o ônibus e depois tacarem fogo com você dentro. Então vou pegar um táxi. É mais caro, porém é mais objetivo e mais confortável.
O dia é estranho, o movimento das pessoas e do trânsito, tudo tão calmo. As lojas não estão abertas, os camelôs do centro não montaram suas barraquinhas. Por um momento pensei que fosse muito cedo, mas olhei no relógio e já são 8:30 da manhã, nesse horário a cidade já está bem acordada. De repente o taxista chama a minha atenção para falar que chegamos. Não demorou nem dez minutos o trajeto casa-trabalho. Geralmente eu faço em vinte minutos. Pago o táxi (cada vez mais caro), e vou em direção a portaria da empresa, quando surge mais outra lembrança, hoje é domingo!


Renan Bono


postagem escrita ao som de:
Volks Volkswagem Blues - Gilberto Gil
One O'Clock last Morning - Gilberto Gil
Refazenda - Gilberto Gil

domingo, 1 de julho de 2007

Texto sobre "Cê", disco do Caetano Veloso

Esse texto (que eu achei interessantíssimo), traça o perfil do mais recente disco do Caetano, lançado em 2006, na visão do Jornalista Paulo Roberto Pires. O disco de um "senhor" de 64 anos (com espírito de um adolescente), que afirma ainda mais a teoria de que o Caetano sempre esteve à frente do seu tempo, e sobretudo mostra a capacidade de renovação desse gênio da música brasileira.
Para você que ainda não ouviu o disco (não sabe o que perde), leia esse artigo e tires suas conclusões (precipitadas ou não). Para você que já ouviu, veja se seus conceitos sobre o "Cê" são os mesmos de Paulo Pontes.
Esse texto também está disponível no site do caetano. www.caetanoveloso.com.br





Duas ou três coisas que Cê i delePaulo Roberto Pires - No.Mínimo15/09/2006

“Cê” andou dando umas voltas pelo CD player do colunista. Pelo iPod do colunista. No carro do colunista. É, é daqueles CDs que tem que ouvir direito, “entrar no disco”, como a gente fala quando não consegue definir o que ouve – ou evita falar mal do que percebe. Por insistência, entrei no disco. E, se o que ouvi lá não leva aos orgasmos múltiplos que Caetano, fescenino neste disco, diz invejar nas mulheres, dá um bocado o que pensar.

“Cê” é um disco de Caetano para o público do Los Hermanos como “A foreign sound” era um disco de Caetano para o público de Rod Stweart, o velho, crooner dos standards. Enfrenta, destemido, as modetes como já enfrentou o brega. Dizer, como se diz, que isso é um “eterno tropicalismo”, uma espécie de coerência atemporal, barateia injustamente a inquietação do cantor.


“Cê” traz 12 canções inéditas, todas dele e só dele. Metade dos versos tem inflexões lúbricas e metáforas, comparações e imagens idem: “feliz e mau como um pau duro”, “mucosa roxa, peito cor de rola”, “todas mucosas pra mim”, “tua ilharga lhana/ mamilos de rosa-fagulha”. Se fosse romancista, Caetano seria o Philip Roth dos últimos anos.

“Cê” é “sujo” e esta é uma de suas grandes virtudes. Som pesado, ligado na cena indie carioca. Caetano, lembrando Jorge Mautner, é um vampiro, que nunca vai ter paz no coração e por isso há 40 anos alimenta-se sabiamente da energia pop desta e de outras extrações.

“Cê” é um tratado para os que, acima das quatro décadas vividas, expõem-se à poderosa radiação de quem nasceu mais para o fim do século passado. É, todo ele, parente de “Gatas extraordinárias”. É todo ele puro tesão, mas também inexorável solidão: há lugares que as mucosas não alcançam ou satisfazem. “Com você eu tenho medo de me apaixonar/ eu tenho medo de não me apaixonar/ tenho medo dele, tenho medo dela/ os dois juntos onde eu não podia entrar”, canta ele para a “Deusa urbana” .

“Cê” também é ódio e vingança, daqueles que só se cultiva por quem se gosta. A pancadaria de “Rocks” bota dedo na cara: “tu é gênia, gata, etcetera/ mas cê foi mesmo rata demais/ meu grito inimigo é:/ você foi mor rata comigo”.

“Cê” transforma numa festa rave o crepúsculo do macho. Caetano, que já foi neguinha, é muito espada neste disco. Nos anos 80, o “Homem velho” era protagonista melancólico da canção que dizia: “a brisa leve/traz o olor fugaz/ do sexo das meninas”. Agora o homem velho é ele, mas desfila “feliz e mau como um pau duro”.

“Cê” roça sua língua na língua e, principalmente, em outras partes de Luiz de Camões. Baixão ao fundo, sotaque de fadista techno, repete em “Por quê?” três versos: “Estou-me a vir/ e tu como é que te tens por dentro?/ por que não te vens também?” Bocage pega Florbela Espanca e se acaba numa noite na Fosfobox. O que quer uma mulher? E um homem?

“Cê” transborda tesão temperado pelas mancadas de uma vida. E é dolorido no balanço do casamento acabado, o baladão “Não me arrependo”: “não, nada irá nesse mundo/ apagar o desenho que temos aqui/ nem o maior dos seus erros/ meus erros, remorsos, o farão sumir”.

“Cê” escancara biografia em “Waly Salomão”, lamento pela morte do amigo, pontuado pelos tambores que, no saguão imponente da Biblioteca Nacional, foram o adeus do Afroreagge ao poeta baiano: “Meu grande amigo/ desconfiado e estridente/ eu sempre tive comigo/ que eras na verdade/ delicado e inocente”.

“Cê” incomoda as partes baixas e também provoca politicamente com “O Herói”, um rap dilacerante que espatifa as certezas no debate sobre o racismo. É tão forte quanto “Haiti” na narrativa de quem quis “fomentar o ódio racial”, “um olho na Bíblia, outro na pistola” e termina redefinindo-se: “Eu sou o homem cordial/ que vim para instaurar a democracia racial”. Pela mão de Caetano, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre viram parceiros de Mano Brown.

“Cê” está para a Caetano como “Duas ou três coisas que sei dela” estava para Jean-Luc Godard. Sobre seu filme, o cineasta escreveu: “Deve-se botar tudo dentro de um filme”. Basta revirar o disco: se não está tudo lá, utopia insistente, está lá o desejo de ter tudo – mucosas, luto, orgasmos e luta.